O SABIÁ
Sabia
que o sabiá sabia assobiar? Dizia o meu avô. Sabia que o sabiá sabia avoar?
Avoa, vô, avoa. E de ave ele entendia.
Mas
o sabiá da minha história não sabia avoar. Assobiar ele sabia. Mas, que mais
batesse as asas, o sabiá não subia.
Avoa,
sô, avoa! O pobre não decolava. Pulava lá do galho, aterrizava na bacia.
Não
desistia o sabiá. Saltava, caía, pulava, caía, tentava, caía. Sabiá na bacia. À
toa, sô, à toa. Todo mundo até ria, mas no fundo já sabia: o sabiá não sabia
avoar.
Vivia
a assobiar seu apetite: comer o ar, caber no ar.
Passar
por cima das casas, das ruas, das gentes, do medo.
Passar
de passarinho, passear devagarinho, sem pra onde nem caminho. À toa, à toa, a
esmo. Só queria mesmo avoar.
Sonhos
também havia. Asas arranhando a barriga das nuvens, vôos atravessando a manhã
vazia. Mas, entre as trapaças da brisa, o sabiá não saía.
Assobiava
que eu nem te conto. Antes, o canto de tenor, a cor na noite escura. Depois, o
canto de temor, a dor da falta de altura. Cantava que eu nem te canto, o sabiá
desencantado.
Dias
de sonhos rasantes, noites de sono arrasado. Mas ele, ressabiado, teimava em
assobiar. Dorremifava macio, no galho ou na bacia, o desejo de avoar.
Um
dia, o sabiá dizia, um dia eu consigo avoar.
A GIRAFA
Girafa
o meu avô não conheceu. Nunca teve o prazer, não foi apresentado. Mas o velho
deitado dizia: filho de peixe, peixinho é.
Isso
vale pra outros bichos. Girafa também é sempre igual.
Nada
fala, tudo espia. Sem um pio, sem um fio de voz. Só em riso e pensamento,
ironiza o mundo no andar de baixo.
Mas
a girafa da minha história era muito diferente. A muda queria mudar. Não o
mundo, mas a vida. Queria enganar o silêncio que lhe esganava a garganta.
Queria encolher a dor de não escolher as palavras. Queria desemudecer.
E
não bastava soltar umas palavras no vento. Também sonhava em cantar. Sonhava
encantar o dia, molhar as tardes de poesia, melar o canto da noite com doces
melodias.
Prestava
atenção no trovão, no temporal, na ventania.
Tentava
imitar o azulão, o rouxinol, a cotovia. Mas a voz não derramava. Então
reclamava baixinho: para que tanta altitude, pra cantar só passarinho?
A
girafa andava injuriada. Andava toda a cidade, do alto dos seus andares,
adorando a paisagem. Mas ficava na saudade o canto de homenagem.
Um
dia, jurava a girafa, um dia eu consigo cantar.
O SABIÁ E A GIRAFA
O
encontro se deu por acaso, por acaso o deus dos encontros.
O
sabiá resolveu chorar no alto de um pé de caju. A girafa se lamentava no baixo
daquele pé. Uma árvore muito esquisita, mas desgosto não se discute.
Estavam
os dois ali. Os dois no mesmo pé. Ela vendo o que não cantava. Ele cantando o
que não conhecia. Ele queria saltar nas alturas. Ela sonhava assaltar
partituras.
E
a dupla melancolia – ou foi a tal natureza? – tratou de cruzar os caminhos. A
sabedoria do vento mandou o sabiá pro espaço. Pra ver se ele avoava. Pra ver se
acertava o compasso, o sabiá avoado.
Mas
ele caiu de cabeça na cabeça da girafa. Silêncio. Sabiá assustado. Contudo,
depois do susto, o coitado gostou do que viu. Cada passo da girafa passeava ele
no céu. Cada girada do pescoço, um horizonte descoberto. E ele recomeçou a
cantar.
A
girafa ficou fascinada. Aquela voz afinada soltou sua cara amarrada. Desfez a
careta enfezada. Ofereceu então moradia ao dono de tal melodia, de canto tão
doce e terno. E o canto do sabiá virou o seu canto eterno.
O
sabiá ficou morando na cabeça da girafa. A girafa, namorando o canto do
companheiro.
Minha
história acaba aqui. Mas a dos dois continua, sem platéia nem juiz, depois do
final feliz.
Fonte: Leo Cunha et al. Meus primeiros contos. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2001.
(Literatura em minha casa vol. 3)
Sobre o autor: Leo Cunha nasceu em 1966, na cidade de Bocaiúva, em Minas Gerais e formou-se em Jornalismo e Publicidade pela PUC de Belo Horizonte. Em 1994, recebeu com “O Sabiá e a Girafa” os prêmios Bienal Nestlé, Jabuti e Ofélia Fontes – O melhor para a criança -, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Além de escrever vários outros livros de contos e poesias (muitos também premiados), ele é tradutor e redator publicitário.
INTERPRETAÇÃO TEXTUAL
QUESTÕES
1- O NARRADOR CITA NO TEXTO FRASES DE UMA PESSOA CONHECIDA
DELE. QUEM É?
2- CITE DUAS DESSAS FRASES.
3- QUAIS ANIMAIS SÃO AS PERSONAGENS PRINCIPAIS DA HISTÓRIA?
4- QUAL DESSES ANIMAIS O AVÔ NÃO CHEGOU A CONHECER?
5- OBSERVE A FRASE: “MAS A GIRAFA DA MINHA HISTÓRIA ERA MUITO
DIFERENTE.”
RESPONDA:
A) POR QUE ESSA GIRAFA ERA DIFERENTE?
B) RETIRE DO TEXTO UMA FRASE QUE COMPROVE SUA RESPOSTA.
C) O SABIÁ DO CONTO TAMBÉM ERA DIFERENTE? POR QUÊ?
6- QUAL DAS DUAS PERSONAGENS QUERIA O IMPOSSÍVEL DE
REALIZAR? POR QUÊ?
7- INDIQUE A QUEM PERTENCEM OS DESEJOS E SONHOS ABAIXO:
A) QUERIA DESEMUDECER
B) QUERIA COMER O AR.
C) SONHAVA ENCANTAR O DIA.
D) SONHAVA ARRANHAR A BARRIGA NAS NUVENS.
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